Imagem: O Jardim de Alah e sua vista do Cristo do Corcovado (Foto: Oscar Valporto)
O tombamento é um instrumento jurídico fundamental para garantir a preservação do patrimônio cultural e histórico no Brasil. Ele impede que bens culturais sejam alterados ou destruídos sem a devida autorização.
Entretanto, em situações excepcionais, pode ser permitido o destombamento ou cancelamento do tombamento. Este procedimento, embora raro, permite a remoção da proteção legal de um bem tombado quando há justificativa suficiente.
Neste artigo, vamos entender o que é o destombamento, quando ele é permitido, e quais são os processos e hipóteses que envolvem essa prática.
O que é tombamento?
O tombamento é um instituto utilizado para declarar o valor cultural, artístico ou histórico de determinado bem. Com isso, o bem se torna parte do patrimônio público, transformando o regime de propriedade privada em um regime especial de tutela pelo Estado, uma vez que a ele foi atribuído um valor social.
Ele garante que esses bens não sejam alterados, destruídos ou alienados sem a autorização do órgão responsável pelo tombamento, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por exemplo. O objetivo é preservar o patrimônio cultural do país, dos estados e dos municípios para as futuras gerações.
Esse processo está regulamentado principalmente pelo Decreto-Lei 25/1937, que institui normas sobre a proteção e conservação de bens que constituem o patrimônio histórico e artístico nacional.
Tanto bens móveis quanto bens imóveis podem ser objeto de tombamento, o que inclui monumentos, edifícios, obras de arte e até paisagens naturais de importância cultural e ele pode ser realizado de maneira provisória ou definitiva, por iniciativa do proprietário – voluntariamente – ou compulsoriamente, caso ele se recuse a anuir com o procedimento.
Ressalta-se, ainda, que tanto bens públicos quanto privados poderão ser objeto de tombamento, desde que haja valor cultural sobre eles, para que, assim, haja a preservação da memória, costumes e história de determinado local. Contudo, focaremos aqui em imóveis particulares, sejam eles para uso residencial ou comercial.
Importante destacar também a diferença entre tombamento e desapropriação. Apesar de ambos serem formas de o Estado intervir na propriedade privada em nome do interesse público, são mecanismos distintos.
Enquanto o tombamento visa a preservação de um bem cultural ou histórico sem transferir a propriedade, a desapropriação envolve a transferência da titularidade em troca de uma indenização, com o bem sendo destinado a um novo uso de interesse público.
O que é o cancelamento de tombamento ou “destombamento”?
O cancelamento de tombamento, ou destombamento, é o processo administrativo ou judicial pelo qual um bem que anteriormente foi tombado, ou seja, reconhecido oficialmente como de valor histórico, artístico, cultural ou ambiental, perde essa proteção.
O destombamento é um instrumento jurídico menos conhecido e menos discutido do que o tombamento, e ganhou relevância nos últimos anos com alguns casos em nível nacional e estadual. Isso porque o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) cancelou o tombamento de ao menos três bens desde 2021.
O destombamento, como está previsto no Decreto-Lei 3.866/41, ocorre apenas a mando do Presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, e, em um olhar mais amplo, por decisão do Poder Executivo.
Ou seja, os representantes do órgão responsável pela proteção do patrimônio, como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a nível nacional, ou seus equivalentes a nível estadual e municipal, poderiam decretar a anulação de um tombamento.
Constitucionalidade do Decreto-Lei 3.866/1941
Em um breve apanhado histórico, o tombamento e seu contraponto, o destombamento, foram ambos instituídos durante a era Vargas, e especificamente no contexto do Estado Novo.
A norma geral que rege o cancelamento de tombamento é o Decreto-Lei 3.866/41, de artigo único, e este decreto causa controvérsia no meio jurídico, especialmente após a promulgação da Constituição de 1988 que reforça a proteção ao patrimônio cultural.
A legislação que prevê a anulação de tombamentos nasceu em um contexto específico de obras de modernização no Rio de Janeiro, então capital federal, durante o governo Vargas.
Para a construção de avenidas e estruturas de saneamento básico, por ordem de Getúlio Vargas, demoliram-se igrejas e uma parte dos Arcos da Lapa – parte do patrimônio tombado da cidade.
Diante disso, especialistas veem o destombamento como um resquício autoritário do Estado Novo e defendem sua inconstitucionalidade, argumentando que o cancelamento de tombamentos, pelo Poder Executivo, prejudica o direito adquirido, da sociedade à preservação do patrimônio cultural, protegido pela Constituição em seu artigo 5º, inciso XXXVI.
Competência para o destombamento
Por outro lado, o destombamento poderia ser compatível com a Constituição de 1988 se interpretado de acordo com seus princípios, especialmente o princípio do interesse público.
Com o advento da democracia e o fortalecimento do federalismo após a Constituição de 1988, estados e municípios passaram a ter mais autonomia para realizar tombamentos, embora o Decreto-Lei 3.866/41 permaneça centrado no Poder Executivo, sem prever mecanismos democráticos, como a consulta de conselhos patrimoniais.
Dessa forma, o cancelamento de tombamento sobreviveria no ordenamento jurídico a partir de uma interpretação em conformidade com a Constituição, viável apenas se utilizado de maneira excepcional e criteriosa, com cautela e em situações específicas, como o perecimento do bem tombado ou a perda de seu valor cultural.
Além disso, o processo deve respeitar as garantias constitucionais de ampla defesa, contraditório e participação popular.
Esse debate sobre a recepção constitucional do destombamento e os cuidados para sua aplicação evidencia a complexidade do equilíbrio entre a preservação do patrimônio cultural e outros interesses públicos.
Hipóteses de aplicação do cancelamento de tombamento
O destombamento, embora permitido, deve seguir parâmetros rigorosos, como a manifestação técnica dos conselhos de patrimônio, audiências públicas e processos administrativos adequados, a fim de evitar sua aplicação arbitrária e garantir que o interesse público seja devidamente avaliado.
A anulação de um tombamento é um procedimento raramente utilizado, mas pode ser aplicado em quatro hipóteses:
- Incapacidade financeira do proprietário e inação dos órgãos de proteção;
- Atendimento de interesse público superveniente;
- Desaparecimento do valor; e
- Perecimento da coisa tombada.
Incapacidade financeira do proprietário e inação dos órgãos de proteção
Quando o proprietário de bem tombado não possuir capacidade financeira para realizar obras de conservação e reparação, deverá informar ao órgão responsável pela sua proteção cultural. Este, por sua vez, deverá providenciar a execução das obras com recursos públicos ou a desapropriação da coisa.
Assim, a primeira hipótese de destombamento ocorre quando o órgão não toma medidas para subsidiar ou realizar as obras necessárias. Nestes casos, o proprietário pode solicitar o cancelamento do tombamento, de acordo com §2º do art. 19 do Decreto-Lei 25/37.
Atendimento de interesse público superveniente
Esta hipótese ocorre quando um interesse público relevante surge e sobrepõe-se ao valor cultural do bem protegido, por exemplo, como a necessidade de modernizações urbanas, que podem demandar a remoção ou alteração de patrimônios previamente tombados.
O bem tombado pode impedir a realização de obras ou projetos que beneficiam a população de forma ampla, como a construção de infraestrutura essencial (estradas, hospitais, saneamento básico, etc.) e, por isso, o destombamento pode ser uma maneira de resolver este conflito de interesses públicos.
O caso do Jardim de Alah no Rio de Janeiro – RJ
Atualmente, existe uma disputa no Município do Rio de Janeiro sobre o futuro do Jardim de Alah, parque municipal localizado entre os bairros Ipanema e Leblon, que é tombado pelo patrimônio histórico.
O Poder Executivo Municipal licitou o direito de exploração do local para uma empresa, que poderia instalar lojas e quiosques no Parque, devendo o projeto conseguir todas as permissões e autorizações dos órgãos competentes, o que garantiria o respeito ao meio ambiente e ao patrimônio histórico.
Apesar do caso, até o momento, não se tratar de destombamento, há uma grande discussão na qual parte da sociedade civil organizada diz que a concessão de lojas e quiosques – que no projeto vencedor inclui a construção de um verdadeiro shopping a céu aberto – viola o tombamento das obras de arte dispostas no jardim, bem como altera as áreas de preservação do entorno de bens tombados.
Enquanto o Município diz que a exploração do local vai trazer apenas benefícios, já que o Parque continuará público, será preservado o meio ambiente e o Patrimônio Histórico, mas o local será revitalizado e ganhará novas possibilidades de turismo e lazer.
A concessionária vencedora da licitação propôs que a área de estacionamento seja subterrânea, para liberar o espaço onde hoje as pessoas estacionam e aumentar a área verde do Jardim. Propôs, ainda, a inclusão de um teto verde nas construções para manter a cobertura vegetal do Parque, o aumento de áreas esportivas, de lazer e de passagem para a população.
Poderia se questionar se a alteração do Jardim de Alah não é reflexo de atendimento a um interesse público superveniente com a modernização do bairro e da cidade. Entretanto, sem o destombamento ou alteração dos parâmetros de proteção do patrimônio histórico, é possível que o projeto não prossiga.
O Ministério Público do Rio de Janeiro questiona o projeto apresentado pela empresa vencedora e as obras estão suspensas por decisão judicial.
Desaparecimento do valor
Há, também, casos em que o valor histórico do bem cultural não mais se justifica, sendo possível cancelar o tombamento.
Um exemplo seria o de um imóvel tombado com base na crença de que uma figura histórica importante havia residido ali, mas, mais tarde, se descobre que essa pessoa nunca morou no referido imóvel.
Assim, se o bem tombado perder o valor cultural que justificou a sua especial proteção, o destombamento pode ser solicitado uma vez que o objetivo de preservação cultural não está mais sendo cumprido.
Perecimento da coisa tombada
Por último, se o patrimônio sofre danos irreparáveis ou desaparece completamente, em virtude de eventos naturais ou acidentes, como incêndios, tornados, enchentes e similares, que acabam por tornar inviável a sua recuperação, o destombamento pode ser solicitado para formalizar a perda do bem protegido.
Processo de destombamento
O Decreto-Lei 3.866/1941, de apenas um artigo, prevê o destombamento, determinando que, em alguns casos, o bem pode perder sua proteção. No entanto, como dito, para que a sua aplicação seja constitucional, requer-se análise criteriosa, respeitando sempre os interesses coletivos.
Havendo, então, motivo justificado para a solicitação do destombamento, o rito processual a ser seguido é formal, envolve várias etapas e deve respeitar a legislação vigente. O procedimento deve incluir a manifestação do conselho de patrimônio, a consulta pública e – em caso de parecer favorável – a averbação do cancelamento no livro do tombo, assegurando que o bem destombado continue registrado para fins históricos. Vamos explicar um pouco melhor as etapas a seguir.
Processo administrativo
A primeira fase consiste em abrir um processo administrativo formal, onde todas as partes interessadas são notificadas.
Um pedido de cancelamento de tombamento deve ser protocolado junto às autoridades competentes, como o IPHAN ou o órgão estadual/municipal de patrimônio cultural. Esse pedido deve ser fundamentado em uma das hipóteses legais e conter todas as justificativas e evidências necessárias.
Manifestação do conselho de patrimônio
Em seguida, o conselho responsável pela proteção do patrimônio deverá ser consultado e emitir um parecer técnico sobre o pedido.
Esse parecer é fundamental para assegurar que a decisão final seja respaldada por especialistas, independente de ser pela recusa ou pela aceitação do pedido.
Participação popular
Logo depois, a legislação brasileira garante a participação da sociedade em decisões de destombamento.
Para isso, audiências públicas podem ser realizadas com o intuito de ouvir a comunidade, especialmente em casos de grande relevância social ou cultural. A sociedade tem direito de participar do processo, oferecendo opiniões e sugestões.
Averbação do cancelamento no livro do tombo
Por fim, após a conclusão do processo e caso o tombamento tenha sido cancelado, o cancelamento deve ser registrado nos livros do tombo, garantindo que o ato fique documentado para fins históricos.
Além disso, como consequência do destombamento, todos os benefícios que antes eram conferidos ao bem em razão da sua condição de especial proteção também são cancelados, como a isenção de IPTU para imóveis tombados, por exemplo.
Conclusão
O destombamento é uma medida rara e cercada de critérios rigorosos, mas necessária em casos excepcionais. Ele só pode ser aplicado em situações como o atendimento ao interesse público, a perda de valor cultural ou o desaparecimento do bem tombado e busca equilibrar a preservação do patrimônio cultural com as demandas contemporâneas da sociedade.
Ao seguir as normas legais e garantir a participação da sociedade, o destombamento pode ser uma ferramenta válida para lidar com mudanças inevitáveis, sempre respeitando os valores culturais e históricos que moldam nossa identidade.
Se você é proprietário de um bem já tombado ou que tenha despertado o interesse de proteção pelo Poder Público, é fundamental estar ciente de seus direitos e obrigações. Isso porque, embora o desrespeito às restrições impostas possa resultar em multas e outros danos, essas mesmas limitações podem também proporcionar vantagens fiscais.
Entender os efeitos do tombamento e o processo para a sua declaração, é de suma relevância para que o proprietário de imóveis tombados aja em conformidade com a lei e assegure seus direitos.
Caso tenha interesse em saber como podemos ajudá-lo com as questões relacionadas ao seu imóvel tombado ou em processo de tombamento, ou se ainda houver alguma dúvida sobre o assunto, entre em contato conosco!
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Artigo objetivo e esclarecedor; belo exercício da Advocacia. Parabéns
Obrigada por nos acompanhar, Caetano.
Seja sempre muito bem vindo!
Gostei muito desse artigo sobre o des tombamento, tenho um imóvel que está nesta situação, mas é muito denominado tem quase um ano que estamos em processo
Gostaria de saber como agilizar esse processo
Wilma, tudo bem?
Sim, é um processo bem demorado porque, em regra, demanda uma perícia judicial. Os processos que demandam perícia judicial tem tempo de duração muito longo pela demora na escolha de um perito expert, pela demora na apresentação e arbitramento de honorários devidos ao perito, pela demora na fabricação e conclusão do laudo pericial.
Muitas vezes, não é possível agilizar o processo – pelo menos não no tempo que o cliente e proprietário gostaria.
Sugiro que converse com seu advogado para entender em qual parte do processo estão parados, para ver se existe alguma possibilidade de agilizar. Às vezes, aceitar a proposta de honorários do perito e já depositar o valor agiliza porque não precisa que o Juiz decida sobre o valor devido. Ou, contratar um bom assistente técnico pode ajudar no momento de confecção do laudo pericial para que o perito tenha uma assistência técnica nesse momento. Enfim, existem algumas possibilidades, mas nem sempre fazem o processo andar no tempo que gostaríamos.
Boa sorte!