Um bom planejamento sucessório é uma medida estratégica essencial para famílias empresárias que desejam organizar a transição patrimonial e societária com segurança, economia e previsibilidade.
Com isso em mente, o ordenamento jurídico brasileiro inclui diversas ferramentas para estruturar um planejamento sucessório estratégico, como a cláusula de sucessão, o testamento, a holding familiar e a doação de quotas com reserva de usufruto. Essas ferramentas, além de proteger os interesses da família, evitam a perda de tempo e facilitam o trabalho do inventariante, no caso do falecimento de um dos sócios.
Neste artigo, examinaremos a doação com cláusula de usufruto de quotas sociais, que permite a antecipação da sucessão sem que o doador perca totalmente o controle ou os rendimentos do negócio. Iremos explorar os aspectos legais, fiscais e operacionais envolvidos na doação das quotas com reserva de usufruto, destacando suas vantagens e efeitos.
O que é doação de quotas com reserva de usufruto?
A doação de quotas com reserva de usufruto é uma ferramenta jurídica do direito empresarial e sucessório que permite que o titular de quotas de uma sociedade empresária transfira a propriedade das quotas para outra pessoa, que muitas vezes é um herdeiro, mantendo para si o direito de usufruí-las. Isto é, apesar da transferência da propriedade da quota, o doador poderá, por exemplo, continuar a receber os rendimentos dela, exercer o direito de voto e participar da administração da sociedade.
O usufruto está previsto nos artigos 1.390 a 1.411 do Código Civil e é definido como um direito real sobre coisas alheias, que confere ao usufrutuário a faculdade de usar e gozar, ainda que temporariamente, de bens pertencentes a outra pessoa. Como já citamos, no caso do usufruto de quotas sociais, essa prerrogativa permite que o doador, agora usufrutuário, continue a receber lucros e dividendos, além de, por vezes, manter o controle da sociedade, mesmo após transferir a nua-propriedade (a propriedade sem o direito de posse, uso e gozo) das quotas para seus sucessores.
Esse instrumento é extremamente relevante no que se refere ao planejamento sucessório, uma vez que o doador, antecipando a sucessão patrimonial, consegue organizar a transmissão de seu patrimônio em vida, evitando ou reduzindo os custos, a burocracia e conflitos familiares que frequentemente surgem em processos de inventário. Essa antecipação permite que o titular do patrimônio defina com clareza quem serão os futuros detentores das quotas, sob quais condições e com quais direitos, garantindo uma transição mais suave e controlada.
Essa estratégia é especialmente interessante no caso da sucessão em empresas familiares, visto que a transferência da propriedade das quotas para os herdeiros assegura a continuidade das operações empresariais e prepara a transição de gestão de forma gradual e planejada, sem que o usufrutuário perca o controle e a renda proveniente do negócio.
Ademais, a doação com usufruto pode ser combinada com cláusulas como a de incomunicabilidade, inalienabilidade, impenhorabilidade, que serão detalhadas adiante, e pode, ainda, ser uma cláusula de usufruto vitalício, reforçando o desejo do doador em manter o controle e a renda, mesmo após a transferência das quotas.
Por fim, é indispensável que a doação de quotas com reserva de usufruto seja formalizada por meio de um contrato, devidamente registrado por escritura pública em cartório e na Junta Comercial a fim de produzir efeitos perante a sociedade.
Diferenças entre cláusula de usufruto e cláusula de sucessão
É importante destacarmos que a doação de quotas com cláusula de usufruto não se confunde com a cláusula de sucessão. Elas são, na verdade, ferramentas que se complementam e constituem um planejamento sucessório estratégico.
A doação com cláusula de usufruto, vitalício ou não, como já explicado, transfere a titularidade das quotas, mas o sócio permanece recebendo os lucros e participando da gestão empresarial. Ela constará no contrato de doação, o qual precisa ser registrado na Junta Comercial para alterar o contrato social e transferir a titularidade da nua-propriedade das quotas ao donatário (herdeiro ou terceiro). A propriedade plena será transferida ao fim do usufruto das quotas sociais, que geralmente ocorre com a morte do sócio doador.
A cláusula de sucessão, prevista no artigo 1.028 do Código Civil, por sua vez, consta no próprio contrato social e regula a transferência das quotas de um sócio a terceiros sem que ele mantenha qualquer tipo de poder sobre a empresa. Ela pode abranger a exclusão de um sócio, a saída voluntária por meio da venda de suas quotas, a herança ou a doação em vida, a aposentadoria e a interdição.
O intuito da cláusula de sucessão é, desta forma, que os sócios definam as regras que prevalecerão quando houver substituição na titularidade societária, protegendo a estrutura empresarial e evitando que pessoas estranhas à sociedade ingressem sem consentimento dos demais sócios.
Vale ressaltar que não há hierarquia entre estes dois institutos, no entanto, caso a cláusula de sucessão em contrato social preveja regras para a transferência de quotas por meio de doação, esta deve deve respeitar os limites estabelecidos, como:
- Necessidade de anuência dos demais sócios;
- Direito de preferência;
- Vedação expressa à doação, por exemplo, para cônjuge ou terceiros estranhos.
Nesse caso, a doação só será válida se cumprir essas condições, ainda que o donatário seja filho ou herdeiro do sócio.
O usufruto de quotas sociais na holding familiar
A holding familiar é uma empresa criada, em regra, para concentrar a administração do patrimônio de uma família, facilitando o planejamento sucessório e protegendo os bens contra riscos externos, como ações judiciais ou disputas familiares. Essa estrutura garante, além da organização e profissionalização da gestão patrimonial, a otimização tributária e uma sucessão facilitada.
Nesse contexto, a doação com usufruto das quotas sociais da própria holding – ou das quotas das empresas operacionais que a holding controla – permite que o usufrutuário, que geralmente detém a maior parte do patrimônio e o controle da sociedade, transfira a nua-propriedade dessas quotas para seus herdeiros ainda em vida. Ao reservar para si o usufruto de quotas sociais, o doador mantém o direito de receber os lucros e dividendos gerados pelos ativos da holding, garantindo sua autonomia financeira.
Além disso, é comum que a cláusula de usufruto estabeleça que o usufrutuário continue a exercer os direitos políticos das quotas, como o direito de voto nas assembleias e reuniões de sócios. Isso significa que, mesmo com a propriedade formal das quotas já transferida aos herdeiros, o doador mantém o poder de decisão e o controle sobre os negócios e o patrimônio familiar, evitando que os donatários, muitas vezes jovens ou inexperientes, tomem decisões precipitadas ou que possam comprometer o legado da empresa.
Em resumo, um planejamento sucessório que inclua a criação de uma holding familiar e preveja a doação com usufruto de quotas sociais proporciona as seguintes vantagens:
- Desburocratização e agilidade na sucessão: com a transferência da nua-propriedade em vida, evita-se a necessidade de um processo de inventário complexo e demorado após o falecimento do doador. A extinção do usufruto, que ocorre automaticamente com a morte do usufrutuário, conforme o artigo 1.410, I, do Código Civil, consolida a propriedade plena nas mãos dos donatários, sem a necessidade de um novo processo judicial ou extrajudicial para essa finalidade, reduzindo drasticamente os gastos em um processo de inventário.
- Maior segurança e proteção patrimonial: ao transferir os bens para a holding e, posteriormente, as quotas da holding para os herdeiros com cláusulas restritivas, o patrimônio fica mais protegido contra dívidas pessoais dos herdeiros, divórcios ou outras eventualidades que poderiam comprometer a integridade dos bens familiares.
- Gestão mais profissional e estratégica do patrimônio: a holding pode ser administrada por profissionais especializados e as regras de governança podem ser estabelecidas no contrato social, garantindo que as decisões sejam tomadas de forma mais racional e alinhada aos interesses de longo prazo da família.
- Sucessão facilitada na empresa familiar: o doador pode, em vida, orientar e capacitar os futuros gestores, promovendo uma transição de liderança mais suave e eficaz, sem que a empresa perca seu rumo ou sua identidade. Nesse sentido, a doação com usufruto pode garantir que o controle permaneça com o doador enquanto ele tiver capacidade e desejo de exercê-lo.
Distribuição de lucros ao usufrutuário
Como já explicamos, o usufruto confere ao usufrutuário o direito de gozar dos frutos e utilidades do bem. Isso significa que, no contexto societário, a distribuição de lucros e dividendos permanece inalterada para o usufrutuário, que continua a perceber os rendimentos gerados pelas quotas como remuneração pelo capital investido e pela participação nos resultados da empresa.
Em contrapartida, uma consideração importante surge quando a sociedade em questão está enquadrada no regime do Simples Nacional. A Lei Complementar 123/2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, estabelece restrições à participação de sócios em outras empresas para fins de enquadramento no Simples Nacional.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) tem interpretado (Processo 13971.721262/2017-22) que a gravação de usufruto sobre quotas de sociedade limitada configura uma modalidade de participação no capital da sociedade para os efeitos do Simples Nacional, mesmo que o usufrutuário não seja efetivamente proprietário das quotas.
Isso significa que, se o usufrutuário mantiver direitos políticos (como o direito de voto) e econômicos (como o recebimento de dividendos), ele pode ser considerado como exercendo os direitos de um sócio para fins de verificação dos limites de receita bruta.
Caso a soma das receitas brutas das empresas controladas ou nas quais tenha participação (incluindo como usufrutuário) ultrapasse o limite legal do Simples Nacional, a sociedade pode ser excluída do regime, resultando em uma carga tributária maior. Dessa forma, embora a distribuição de lucros ao usufrutuário em si não mude, a doação de quotas com reserva de usufruto pode ter implicações no regime tributário da empresa, exigindo uma análise cuidadosa para evitar surpresas fiscais.
ITCMD sobre a transferência das quotas com reserva de usufruto
O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) é um tributo de competência estadual que incide sobre a transmissão de quaisquer bens ou direitos por herança (causa mortis) ou por doação (inter vivos). O fato gerador do imposto ocorre no momento da doação, mesmo que o doador mantenha o usufruto das quotas. Sua base de cálculo, em regra, é o valor dos bens ou direitos transmitidos.
Na doação de quotas com reserva de usufruto, o ITCMD pode incidir apenas sobre o valor da nua-propriedade, e não sobre o valor total das quotas, de modo que o valor do usufruto é deduzido da base de cálculo da doação. Mas isso depende da legislação estadual.
Em alguns estados, como São Paulo, a legislação (art. 31, § 3º, do Decreto estadual 46.655/2002) permite que o ITCMD seja calculado apenas sobre o valor da nua-propriedade das quotas no momento da doação. Desta forma, se o contribuinte optar por pagar o ITCMD apenas sobre a nua-propriedade, a tributação do valor do usufruto só ocorre quando este se extinguir, normalmente por falecimento do usufrutuário. Paga-se o imposto sobre 2/3 do valor das quotas no ato da doação e, posteriormente, sobre o 1/3 restante quando o usufruto se extingue e a propriedade plena se consolida no donatário.
Por outro lado, há estados, como Minas Gerais (art. 4º da Lei estadual 14.941/2003) e Rio de Janeiro (art. 24, I, b, da Lei estadual 7.174/2015), que exigem o pagamento do ITCMD sobre o valor integral das quotas já no momento da doação, independentemente da existência de usufruto. Nesses casos, apesar do valor de imposto pago inicialmente ser maior, não há nova incidência do ITCMD quando o usufruto se extingue, uma vez que a extinção do usufruto não representa uma nova transmissão de propriedade e sim a consolidação da propriedade plena ao donatário.
Outras cláusulas restritivas
Além da reserva de usufruto, o doador de quotas sociais pode instituir outras cláusulas restritivas sobre os bens doados, com o objetivo de proteger o patrimônio e evitar que os bens sejam desviados de sua finalidade ou comprometidos por eventos futuros na vida do donatário.
Essas cláusulas, previstas no Código Civil, somadas à doação com usufruto, conferem maior segurança jurídica ao planejamento sucessório, assegurando que o legado familiar seja preservado e que a sucessão ocorra de forma controlada. No entanto, para a correta aplicação dessas cláusulas e garantir a validade e a eficácia das disposições, evitando futuros litígios, é essencial a assistência de profissionais especializados em direito sucessório e empresarial.
Prevista no artigo 1.668, inciso I, do Código Civil, a cláusula de incomunicabilidade é uma dessas cláusulas. Conforme o artigo citado, ela impede que o bem doado se comunique com o patrimônio do cônjuge do donatário, independentemente do regime de bens adotado no casamento ou união estável. Isso significa que, mesmo que o donatário seja casado sob o regime de comunhão universal de bens, as quotas doadas com essa restrição não farão parte do patrimônio comum do casal.
A finalidade principal da cláusula de incomunicabilidade é proteger o patrimônio familiar de um eventual divórcio ou dissolução da união estável, garantindo que as quotas permaneçam na linhagem familiar do doador e não sejam partilhadas com terceiros. Essa medida é particularmente relevante em contextos de sucessão em empresa familiar, onde a manutenção do controle e da propriedade dentro da família é o principal objetivo.
A cláusula de inalienabilidade, por sua vez, está disposta no artigo 1.911 do Código Civil e proíbe que o donatário venda, doe ou aliene o bem recebido. Assim como a cláusula de incomunicabilidade, essa restrição visa assegurar que o patrimônio permaneça com o donatário e fique, por consequência, dentro da família.
A inalienabilidade pode ser vitalícia ou por prazo determinado, e sua instituição deve ser justificada por uma justa causa. No caso de quotas sociais, essa cláusula impede que o donatário se desfaça de sua participação na empresa, garantindo a estabilidade do quadro societário e a continuidade do negócio. É importante notar que a inalienabilidade implica também a impenhorabilidade e a incomunicabilidade do bem, salvo disposição em contrário, o que reforça a proteção do patrimônio.
Como citado, também pode ser estipulada uma cláusula de impenhorabilidade, nos termos do artigo 1.911 do Código Civil. Essa cláusula protege o bem doado de ser penhorado por dívidas do donatário, ou seja, em caso de execução judicial contra o donatário, as quotas sociais gravadas com essa cláusula não poderão ser utilizadas para quitar suas obrigações.
Essa medida é uma forma eficaz de blindar o patrimônio familiar contra riscos financeiros e credores, assegurando que as quotas permaneçam na posse do donatário e, consequentemente, na família. A impenhorabilidade é uma garantia importante para a estabilidade do negócio, pois evita que a participação societária seja comprometida por problemas financeiros pessoais dos herdeiros.
Por fim, está prevista no artigo 547 do Código Civil a cláusula de reversibilidade, que permite que o doador defina que o bem doado retorne ao seu patrimônio caso o donatário venha a falecer antes dele. Essa cláusula é uma proteção para o doador, especialmente em situações em que o doador deseja ter a certeza de que o patrimônio não será transmitido para terceiros (como herdeiros do donatário) caso o donatário venha a óbito prematuramente.
Assim, caso o donatário venha a falecer antes do doador, as quotas retornam ao patrimônio do doador, que pode então decidir sobre um novo destino para elas, seja por meio de um testamento ou de uma nova doação, mantendo o controle sobre a sucessão do seu patrimônio.
Conclusão
Ao possibilitar a antecipação da sucessão patrimonial, com preservação dos direitos econômicos e, em certos casos, do poder de decisão, a doação de quotas sociais com reserva de usufruto reduz custos, burocracias e potenciais conflitos, além de assegurar a continuidade dos negócios e proteger o patrimônio.
Combinada com outras cláusulas restritivas e ferramentas do planejamento sucessório, como as holdings familiares, a cláusula de usufruto de quotas sociais oferece segurança jurídica e flexibilidade, permitindo que o doador mantenha o controle e os rendimentos enquanto prepara a próxima geração para a gestão responsável e sustentável do legado familiar.
No entanto, este tipo de operação exige atenção a aspectos contratuais, tributários e societários, como a incidência do ITCMD, as implicações no regime do Simples Nacional e a necessidade de compatibilização com o contrato social da empresa. Por isso, o acompanhamento jurídico especializado é essencial para estruturá-la de forma segura, eficaz e alinhada aos objetivos da família empresária.
Caso ainda tenha alguma dúvida sobre a doação de quotas sociais com reserva de usufruto, entre em contato conosco e saiba como podemos ajudar!
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